O tempo que corre rápido e a idéia de que é preciso estar sempre alegre podem estar na origem de um dos grandes males do século XXI: a depressão.
A partir de casos que chegaram ao seu consultório e de reflexões históricas, a psicanalista Maria Rita Kehl levantou a hipótese de que a depressão é, sim, um sintoma social.
No livro “O Tempo e o Cão” (editora Boitempo), que chega esta semana às livrarias, ela pondera:
- Os depressivos, além de se sentirem na contramão de seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social de sua tristeza
Para Maria Rita Kehl, numa sociedade que “aposta na euforia como valor”, a tristeza e o desânimo tendem a ser vistos como patologia, como um comportamento a ser corrigido – de preferência, com remédios.
A psicanalista me recebeu em seu consultório, no bairro de Perdizes, em São Paulo, para esta entrevista que toca em alguns das reflexões presentes no livro.
Você diz que a depressão, hoje, é semelhante ao que era a histeria século XIX. Quer dizer que a tristeza é tão mal aceita hoje quanto era o comportamento feminino não recatado?
Quando falo de sintoma, não me refiro a dados estatísticos. Mas por que podemos pensar a histeria, no século XIX, como sintoma social?
Porque, nas regras de convívio e da moral desse período, o lugar da mulher estava claramente delimitado: a mulher que casa virgem, é fiel ao marido, cuida dos filhos, vive dentro de casa.
A histeria se torna sintoma social quando os médicos começam a receber, nos consultórios, mulheres que tinham convulsões, cegueiras e paralisias sem que nada fosse constatado no exame clínico.
Sempre houve e sempre haverá histéricas, mas, naquele momento, aquele comportamento enigmático causou um ruído por ser algo oposto à imagem da mulher serena, recatada, contida na sua expressão.
As histéricas rasgavam a fantasia e sinalizavam que havia alguma coisa errada.
E por que os deprimidos são o sintoma social deste início do século XXI?
Se você pensar nos parâmetros da sociedade contemporânea, é possível dizer que se trata de uma sociedade anti-depressiva.
É uma sociedade, aparentemente, com muita liberdade de escolha: como você quer viver, seu estilo de vida, como você vai se vestir, que tribo vai frequentar, o que vai comer, beber.
Há muita liberdade no plano superficial, no plano da festa. Existe muito apelo para a diversão.
Em contraste com o século XIX, em que o apelo era para contenção, sobriedade, repressão da sexualidade, hoje, a moral social é uma moral da diversão, não do sacrifício.
É uma moral que chama para aquilo que, na psicanálise, chamamos de gozo. É mais do que o prazer, é o excesso.
A rave não é, de alguma maneira, o símbolo disso tudo?
E para aguentar uma rave você é obrigado, inclusive, a tomar uma química. O apelo social não é para você aguentar o trabalho, mas a festa. Claro que a festa é ótima. Mas o que digo é que ela foi transformada no ideal social deste momento.
E o deprimido destoa radicalmente desse ideal.
Sim, porque esta é a única sociedade em que as pessoas ficam infelizes por se sentirem culpadas de não estarem tão felizes quando deveriam. Se alguém está triste, o que é natural na vida, essa cobrança social duplica a infelicidade.
O depressivo é sintoma social porque ele é aquele que não consegue aceitar o convite tão sedutor para estar sempre de bem com a vida. Mas esse é apenas um dos paradoxos. O outro diz respeito ao uso excessivo de medicação.
Seria o paradoxo do aumento do consumo de anti-depressivos e, ao mesmo tempo, do número de deprimidos?
A partir da década de 1980, a indústria farmacêutica começa a desenvolver anti-depressivos muito sofisticados. Era de se esperar que, com a oferta de soluções medicamentosas, o número de depressivos caísse. Em vez de cair, só aumenta.
Você pode até dizer que isso acontece porque, havendo remédio, mais gente procura os médicos. Mas isso não explica um salto de 50%.
Essa é uma das razões pelas quais esse tema começa a preocupar os psicanalistas. A psicanálise tem que começar a pensar na depressão, que passou muito tempo sendo tratada apenas por psiquiatras.
Do contrário, estaremos condenando essas pessoas que se dizem depressivas a só se tratar com remédios.
Mas o remédio, em muitos casos, é a única saída, não?
Claro, e não se trata de pôr um campo contra o outro. Muitos depressivos precisam de medicação até para conseguir sair da cama, pegar um ônibus e vir para a consulta.
Não é uma cruzada contra o anti-depressivo, mas um contra a medicalização indiscriminada.
Por pressão dos laboratórios, os médicos começam a dar anti-depressivo para qualquer coisa: falta de apetite, stress, problemas no trabalho, mau humor.
Qual a conseqüência disso?
Muitas vezes eu recebo pacientes, aqui no consultório, ou numa escola do MST em que atendo pessoas de baixa renda, que já chegam se dizendo deprimidos. Esse é diagnóstico do século.
Aí você descobre que aquela pessoa não é deprimida, ela apenas não se recuperou de uma perda qualquer.
Há casos de gente que passa a vida tomando remédio sem precisar. E o anti-depressivo produz uma certa acomodação, um esvaziamento psíquico.
Psicanaliticamente, como pode ser definido um depressivo?
O depressivo recua para não ter de enfrentar conflito. E o conflito é o centro da vida psíquica. Não é que você tenha que viver em conflito, não saber o que quer, mas a vida psíquica exige constantes enfrentamentos entre o vetor do desejo e o do super-ego, que diz “isso não pode”.
O depressivo tende a recuar diante da necessidade de fazer escolhas e a não enfrentar os desafios da vida.
Você fala, no livro, que o depressivo tende a ser visto como “o portador de más notícias”. Voltando ao caráter social da depressão, o quanto essas característica são agravadas hoje?
O senso comum imagina que fulano não sai da cama porque está deprimido. Estou propondo inverter um pouco a lógica.
Fulano está deprimido porque não sai da cama, não sai do quarto, não sai de casa. Ou seja, primeiro o sujeito recua e, em consequência desse recuo, ele se deprime.
Qual o papel da tecnologia nisso tudo? Ela agrava o isolamento?
A tecnologia propicia muitas relações, mas sem a presença corporal. E a pulsão vital do homem só se mobiliza diante do outro corpo.
Se ficar apenas mandando mensagens ou e-mails, você pode ficar num estado de esfriamento. Não é falar mal da tecnologia, mas ela não pode substituir o presencial.
Mas o que mais chama a minha atenção é o ritmo veloz que a tecnologia imprime à vida, a velocidade com a qual ela te solicita. A internet, o celular, o trânsito te solicitam sem parar.
Quando você dirige um carro na marginal, você não pode parar de responder a estímulos externos.
A imagem do motorista na auto-pista é uma espécie de metáfora do sujeito contemporâneo.
Ele não pode ficar para trás, não pode diminuir a velocidade e tem de estar atento a todos perigos e solicitações, numa permanente rivalidade com o outro.
A falta de tempo pode levar à depressão?
O psiquismo tem toda uma delicadeza. O homem é capaz de suportar tudo, mas as adaptações têm um preço.
A adaptação à velocidade contemporânea, que atropela os processos psíquicos mais delicados, da memória, do devaneio, da fantasia, da chamada vida interior, pode ter como preço a depressão.
A velocidade cria um vazio, e não um preenchimento. Pense numa semana em que você correu muito. A gente olha e parece que não aconteceu nada, parece que só o tempo voou por cima da gente.
O que eu fiz do meu tempo? Nada, só respondi a estímulos, a demandas, e aí vem o sentimento de desvalorização da vida.
Que participação a mídia tem nisso?
A mídia e a publicidade são o arauto dessa ideologia. A publicidade tem de ser analisada. Que mensagem a publicidade vende? Seja um campeão, seja feliz, os outros que se danem. Como diz o (jornalista) Eugênio Bucci, a publicidade vende, sobretudo, a exclusão.
E como preservar nossa vida psíquica?
O Antonio Candido, na inauguração de uma biblioteca do MST, disse: tempo não é dinheiro, essa é uma barbaridade que o capitalismo nos impõe. O tempo é o tecido da vida.
Essa foi uma das sementes do livro. É uma brutalidade eu pensar que tenho de fazer, sempre, o meu tempo render dinheiro.
Vamos ver o que estamos fazendo com o tecido da vida, porque ele esgarça, ele rasga, perde a cor, fica fragilizado.
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